domingo, 18 de janeiro de 2015

A MISSÃO DE PAULO ENTRE OS GENTIOS


Paulo e sua missão entre os gentios


A Defesa de Paulo Perante o Rei Agripa (26:1-23)

Paulo não fora compelido a falar, tendo apelado para César; mas acolhia com grande prazer aquela boa oportunidade de dar seu testemunho perante aquele grupo de pessoas importantes. Não se tratava dum julgamento, e Festo não estava a pedir conselhos ou opiniões acerca do mérito das acusações feitas a Paulo e nem acerca da apelação de Paulo a Cesar. Ele já dantemão havia declarado a inocência de Paulo e o seu propósito de enviar Paulo a Roma (25:25 em diante). Como dissemos atrás, ele estava no momento satisfazendo a dois desejos: ho­menagear Agripa e receber dele auxílio para formular algo concreto para sua carta a César. Assim, o discurso de Paulo era uma defesa de sua própria vida e ministério, e, mais que isto, uma defesa do evangelho dum Cristo sofredor e ressurreto, anunciado como a luz tanto para judeus como para gentios (26:23).

Paulo, ao dirigir-se a Agripa, não usou palavras indulgentes, nem falsas e nem aduladoras. Tinha motivos para se alegrar por aquela oportunidade que se lhe concedia, de explicar pes­soalmente o seu caso e também proclamar o cristianismo peran­te os mais altos líderes dentre os judeus. Isto era um fato de grande relevância, pois que Agripa conhecia os costumes e as controvérsias da gente judia. Os Herodes podiam ser deprava­dos, mas não eram gente entorpecida. Apesar de todas as suas crueldades e luxúria, eram surpreendentes o poder e influência que tinham entre judeus e romanos.

Depois das palavras de gratidão a Agripa, Paulo tratou dos pontos seguintes: primeiro, do seu judaísmo inteiriço (vv. 4-11); segundo, de sua conversão, que só se podia explicar por uma intervenção divina (vv. 12-15); terceiro, do seu ministério para judeus e gentios (vv.16-18); quarto, da sua vida de obediência à vontade de Deus, o que o levou à prisão (vv. 19-21); e, quinto, da sua crescente afirmação do evangelho do Cristo sofredor e ressurreto, sempre fiel para com Moisés e os profetas, e procla­mado como a luz para “o povo” e para os gentios (vv. 22 e 23).

O seu judaísmo cabal e inteiriço, afirmou Paulo, podia ser testificado e verificado por todos quantos desejassem ver isso (v. 4 em diante). Pessoa alguma podia negar que ele vivera conforme a mais rigorosa seita, ou partido, da religião deles, como um perfeito fariseu (v. 5). A esperança que ele alimentava no presente não era nenhuma inovação, mas a verdadeira esperança de Israel. E tal esperança não era de natureza mera­mente sectária: era “a esperança das doze tribos”, a esperança de todo o Israel (v. 7). Com certa dose de ironia, referiu-se ele a um fato quase incrível: “E, por causa desta esperança é que sou acusado pelos judeus, ó rei!” Por certo a emoção tomou conta de Paulo naquele momento em que focalizou de novo esse fato quase incrível de que os judeus, e todo o seu povo, se mostra­vam tão cegos assim, a ponto de não enxergarem a cristalização de sua grande esperança histórica! E Paulo de novo baseia todo o seu argumento no glorioso acontecimento da ressurreição (v. 8).

Já houve quem dissesse que Paulo não tratou da acusação real, que dizia respeito ao templo. Paulo, porém, estava simples­mente voltando atrás, para aquilo que subjazia ao conflito com o seu povo. Qualquer ponto de sua convicção que não desse o primeiro lugar ao Cristo ressurreto levava-o a discordar de seus opositores e a romper com eles. Se concordassem com ele nesta experiência, todos os seus conflitos e atritos estariam aplainados. O ministério e apostolado aos gentios, tão ofensivo para os judeus, jamais receberia o endosso de Paulo, caso não tivesse ele se encontrado com o Cristo ressurreto. Assim, a troca de papéis, passando de perseguidor a perseguido, jamais encontraria explicação na vida de Paulo.

Paulo adiantou outras fortes provas do seu estranhado ju­daísmo, falando do seu zelo sincero, ainda que iludido, quando se lançara a perseguir os discípulos de Jesus (vv. 9-11). As palavras que empregou então indicam perseguições ainda mais serias que aquelas já referidas. A afirmativa de Paulo de ter “dado seu voto contra" os discípulos de Jesus não prova que ele foi nem que não foi membro do sinédrio, pois que aquela expressão pode se referir a um ato oficial ou não.

O vocábulo “conversão” não é palavra forte demais para descrever a experiência de Paulo em Damasco (vv. 12-15). O que então houve lá foi uma revolução completa na vida dele e só pode ser explicada à luz do seu encontro com o Cristo ressurreto. Quanto aos “aguilhões” (v. 14) têm surgido as mais descontroladas explicações. É certo que a conversão de Paulo não se deu como num vácuo, e seguramente muitos fatores e forças o condicionaram e prepararam para aquela revolucionadora expe­riência. Sem dúvida, muitas tensões ele experimentou no seu íntimo, mesmo quando ainda adolescente ou já moço, em Tarso, onde o exclusivismo e as vantagens de sua família certamente atraíam a malquerença doutros jovens da cidade. Outras tensões por certo experimentou em Jerusalém, visto que seu temperamento sensível resistiria inconscientemente ao superficialismo e artificialismo tradicionais em que fora educado. É possível também que tivesse experimentado decepções e tristezas, resul­tantes dos atritos de judeus com romanos. O jovem Saulo se orgu­lhava, talvez, de ter as duas cidadanias, mas não poucas vezes uma se opunha à outra. Então teria também, com toda a probabi­lidade, sentido dentro de si certas incompreensões e perplexida­des, como quando se achou diante de Estêvão e doutros cristãos do quilate moral desse primeiro mártir. O zelo amargo com que buscara destruir o Caminho já era, talvez, em si, forte sintoma de uma consciência desassossegada. É possível, pois, admitir em Saulo de Tarso tanto a sinceridade como “os aguilhões”, contra os quais recalcitrava; e isso pode ser verificado e atestado por quem olha para trás, depois de se ter libertado de uma situação incômo­da e difícil. Um cristão amadurecido da raça branca pode lembrar-se com tristeza dos dias em que sinceramente admitia aquilo que lhe ensinaram a respeito do preto, de que este “devia ficar no seu lugar”, e lembrar-se ao mesmo tempo de suas lutas íntimas ao impacto dos princípios humanitários que contradiziam seus injustos preconceitos. O capítulo 7 da Epístola aos Romanos por certo nos dá uma boa ideia de algo dessa luta de Paulo antes de converter-se.

Referindo-se à sua comissão (vv. 16 a 18), diz-se que Paulo recebeu ordem para testificar aquilo que havia visto e aquilo que ainda ia ver. Informou-se lhe também que sua missão o levaria a entrar em tais relações com “o povo” (os judeus) e com os gentios, que haveria muitas ocasiões para “livrá-lo” de não poucos atritos (v. 17). Sua obra seria a de “lhes abrir os olhos, a fim de que se convertam das trevas à luz e do poder de Satanás a Deus, para que recebam remissão de pecados e herança entre aqueles que são santificados pela fé” em Jesus (v. 18). Em geral se entende que este versículo se refere aos gentios; mas há razão para afirmar-se que todo ele pode referir-se igualmente a judeus e gentios. Esta última interpretação calha melhor com o ponto de vista dos Atos e com a interpretação que o próprio Paulo nos dá do seu ministério.

Foi justamente por obedecer estritamente a esta comissão que Paulo foi detido (vv. 19-21). Do ponto de vista de Lucas, bem como do de Paulo, importa registrar este fato. O verdadeiro judaísmo sobreviveu nessa missão, e não na de seus opositores.

Uma questão menor surge da afirmativa que Paulo fez de haver pregado “por toda a terra da Judéia” (v. 20). Entendido literalmente, não se pode harmonizar este versículo com Gálatas 1:22. Possivelmente houve algum lapso no texto, ou falta algum dado para o exegeta.

A declaração sumária de Paulo é o clímax do seu discurso, em que reafirma que estava anunciando nada mais que aquilo que fora antecipado por Moisés e os profetas: que o Messias devia sofrer e ressuscitar, e assim ser a luz tanto para judeus como para gentios (v. 22). Não há prova alguma de que os judeus do século primeiro esperavam ou desejavam um Messias sofredor; mas o elemento de sofrimento não fora omitido pelos profetas. A inclusão dos gentios no plano divino de salvação também foi contemplada pelos profetas. E Paulo insistiu em afirmar que a ênfase que estava dando a um Salvador sofredor, à ressurreição e à missão entre os gentios podia ser encontrada igualmente na tradição dos antigos e no verdadeiro judaísmo profético.

Paulo Constrange Agripa para Que Se Manifeste (26:24-29)

Festo achou confusa toda a controvérsia, e também a dis­cussão havida, e em especial se viu perplexo diante da decla­ração que Paulo fez, de que judeus e gentios seriam iluminados por um Cristo padecente que ressuscitara dentre os mortos (v. 23). Isto era muita coisa para ele, e, assim, em voz alta, disse: Estás louco, Paulo, as muitas letras te fazem delirar” (v. 24). Porque o vocábulo grego traduzido por “mania” ou “loucura” se relaciona com a palavra grega traduzida por “profeta” ou “pessoa inspirada”, alguns comentadores acham que estas palavras de Festo não são ofensivas e que davam o discurso de Paulo como inspirado. É certo que o vocábulo tanto pode sugerir loucura como inspiração, e para Festo as duas ideias podiam estar intimamente relacionadas.

Contudo, a réplica de Paulo nos esclarece que Festo não quis apenas dizer que Paulo falava inspiradamente; Festo quis dizer que Paulo não estava raciocinando corretamente, ou que Paulo não estava sendo inteiramente racional. Paulo protestou, afir­mando que o que dissera sobre a ressurreição era pura verdade. Então Paulo se dirigiu a Agripa, visto estar naturalmente mais relacionado com este do que com Festo, e o impressionou, buscando fazer com que se manifestasse. Ele se dirigiu tão diretamente a Agripa que difícil lhe seria evadir-se. Agripa não ousou dizer que não cria nos profetas (v. 27), e também não quis ver-se arrastado a endossar pessoalmente o que Paulo afirmava a respeito dos princípios evangélicos. Agripa revelou nisso a típica sagacidade de um herodiano, fugindo ao cerne da questão; e, assim fazendo, legou para os exegetas um enigma que até hoje não conseguiram resolver.

De fato, não se sabe exatamente o que Agripa disse, ou quis dizer, na resposta que deu a Paulo (v. 28). A Versão Autorizada inglesa traduz assim: “Quase que tu me persuades a ser cris­tão”; é a tradução corrente, mas indefensável. No entanto, dizer-se exatamente o que Agripa quis expressar vai muito além da nossa ciência. De início, podemos notar que os manuscritos não concordam sequer em dois pontos. A evidência mais forte favorece a expressão “fazer-me cristão” e não “tornar-me cristão”. Admite-se quase positivamente que a frase era esta — “fazer-me cristão”; mas esta pode trazer no seu bojo duas ideias. Significaria “fazer-se cristão”? Ou, “fazer de outro (Festo) um cristão”?

O modo do verbo “persuadir” também difere nos manuscri­tos e isto faz variar a tradução. E também a frase que literal­mente seria “em um pouco” (o errado “quase” das traduções comuns) pode significar qualquer das seguintes coisas: “breve­mente”, “dentro em pouco”, “com pouco esforço”. A afirmativa de Agripa, então, poderia ser: “Em suma, tu me estás per­suadindo a fazer o papel de cristão.” Também pode ser: “Em suma, tu me estás persuadindo a me fazer um cristão”, isto é, ajudar a converter Festo. Fosse qual fosse o sentido das pala­vras de Agripa, Paulo as tomou como uma evasiva. E isso fez com que Paulo se tornasse mais ousado ao expressar seu desejo de que todos ali se tornassem tais qual ele — exceto as cadeias.

Festo e Agripa Concordemente Reconhecem que Paulo É Inocente (26:30-32)

Paulo se fizera um pregador e evangelista tão completo que os dignitários se alegraram em reconhecer que Paulo nada devia, e merecia ser solto. O único motivo de conservá-lo em custódia era o haver Paulo apelado para César. Pode ser que a lei romana determinasse que, uma vez feita a apelação para César, o processo devia prosseguir; ou pode ser que Festo simplesmente se escondesse atrás dessa conclusão para evitar o esfriamento de suas relações com os judeus, caso soltasse a Paulo. Para Lucas, coisa mais importante que estas considera­ções era o fato de que agora Festo, Agripa e Lísias reconheciam, todos, a inocência de Paulo.


Bibliografia F. Stagg

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