Paulo e sua missão entre os gentios
A Defesa de Paulo Perante o Rei Agripa (26:1-23)
Paulo não fora compelido a falar, tendo apelado para César; mas
acolhia com grande prazer aquela boa
oportunidade de dar seu
testemunho perante aquele grupo de pessoas importantes. Não se tratava dum
julgamento, e Festo não estava a pedir conselhos ou opiniões acerca do mérito
das acusações feitas a Paulo e nem acerca da apelação de Paulo a Cesar. Ele já dantemão havia declarado a inocência de Paulo e
o seu propósito de enviar Paulo a Roma (25:25 em diante). Como dissemos atrás, ele
estava no momento satisfazendo a dois desejos: homenagear Agripa e receber
dele auxílio para formular algo concreto para sua carta a César. Assim, o
discurso de Paulo era uma defesa de sua própria vida e ministério, e, mais que
isto, uma defesa do evangelho dum Cristo sofredor e ressurreto, anunciado como
a luz tanto para judeus como para gentios (26:23).
Paulo, ao dirigir-se a Agripa, não usou palavras indulgentes, nem
falsas e nem aduladoras. Tinha motivos para se alegrar por aquela oportunidade
que se lhe concedia, de explicar pessoalmente o seu caso e também proclamar o
cristianismo perante os mais altos líderes dentre os judeus. Isto era um fato
de grande relevância, pois que Agripa conhecia os costumes e as controvérsias
da gente judia. Os Herodes podiam ser depravados, mas não eram gente entorpecida. Apesar de todas as
suas crueldades e luxúria, eram surpreendentes o poder e influência que tinham
entre judeus e romanos.
Depois das palavras de gratidão a Agripa, Paulo tratou dos pontos
seguintes: primeiro, do seu judaísmo inteiriço (vv. 4-11); segundo, de sua
conversão, que só se podia explicar por uma intervenção divina (vv. 12-15);
terceiro, do seu ministério para judeus e gentios (vv.16-18); quarto, da sua
vida de obediência à vontade de Deus, o que o levou à prisão (vv. 19-21); e,
quinto, da sua crescente afirmação do evangelho do Cristo sofredor e
ressurreto, sempre fiel para com Moisés e os profetas, e proclamado como a luz
para “o povo” e para os gentios (vv. 22 e 23).
O seu judaísmo cabal e inteiriço, afirmou Paulo, podia ser
testificado e verificado por todos quantos desejassem ver isso (v. 4 em
diante). Pessoa alguma podia negar que ele vivera conforme a mais rigorosa
seita, ou partido, da religião deles, como um perfeito fariseu (v. 5). A
esperança que ele alimentava no presente não era nenhuma inovação, mas a
verdadeira esperança de Israel. E tal esperança não era de
natureza meramente sectária: era “a esperança
das doze tribos”, a esperança de todo o Israel (v. 7). Com certa
dose de ironia, referiu-se ele a um fato quase incrível: “E, por causa desta
esperança é que sou acusado pelos judeus, ó rei!” Por certo a emoção tomou
conta de Paulo naquele momento em que focalizou de novo esse fato quase
incrível de que os judeus, e todo o seu povo, se mostravam tão cegos assim, a
ponto de não enxergarem a cristalização de sua grande esperança histórica! E
Paulo de novo baseia todo o seu argumento no glorioso acontecimento da
ressurreição (v. 8).
Já houve quem dissesse que Paulo não tratou da acusação real, que
dizia respeito ao templo. Paulo, porém, estava simplesmente voltando atrás,
para aquilo que subjazia ao conflito com o seu povo. Qualquer ponto de sua
convicção que não desse o primeiro lugar ao Cristo ressurreto levava-o a
discordar de seus opositores e a romper com eles. Se concordassem com ele nesta
experiência, todos os seus conflitos e atritos estariam aplainados. O
ministério e apostolado aos gentios, tão ofensivo para os judeus, jamais
receberia o endosso de Paulo, caso não tivesse ele se encontrado com o Cristo
ressurreto. Assim, a troca de papéis, passando de perseguidor a perseguido,
jamais encontraria explicação na vida de Paulo.
Paulo adiantou outras fortes provas do seu estranhado judaísmo,
falando do seu zelo sincero, ainda que iludido, quando se lançara a perseguir
os discípulos de Jesus (vv. 9-11). As palavras que empregou então indicam
perseguições ainda mais serias que aquelas já referidas. A afirmativa de Paulo
de ter “dado seu voto contra" os discípulos de Jesus não
prova que ele foi nem que não foi membro do sinédrio, pois que
aquela expressão pode se referir a um ato oficial ou não.
O vocábulo “conversão” não é palavra forte demais para descrever a
experiência de Paulo em Damasco (vv. 12-15). O que então houve lá foi uma revolução completa na
vida dele e só pode ser explicada à luz do seu encontro com o Cristo ressurreto.
Quanto aos “aguilhões” (v. 14) têm surgido as mais descontroladas explicações.
É certo que a conversão de Paulo não se deu como num vácuo, e seguramente
muitos fatores e forças o condicionaram e prepararam para aquela revolucionadora experiência. Sem dúvida, muitas
tensões ele experimentou no seu íntimo, mesmo quando ainda adolescente ou já
moço, em Tarso, onde o exclusivismo e as vantagens de sua família certamente
atraíam a malquerença doutros jovens da cidade. Outras tensões por
certo experimentou em
Jerusalém, visto que seu temperamento sensível resistiria inconscientemente ao
superficialismo e artificialismo tradicionais em que fora educado. É possível
também que tivesse experimentado decepções e tristezas, resultantes dos
atritos de judeus com romanos. O jovem Saulo se orgulhava, talvez, de ter as
duas cidadanias, mas não poucas vezes uma se opunha à outra. Então teria
também, com toda a probabilidade, sentido dentro de si certas incompreensões e perplexidades, como
quando se achou diante de Estêvão e doutros cristãos do quilate moral desse
primeiro mártir. O zelo amargo com que buscara
destruir o Caminho já era, talvez, em si, forte sintoma de uma consciência
desassossegada. É possível, pois, admitir em Saulo de Tarso tanto a sinceridade
como “os aguilhões”, contra os quais recalcitrava; e isso pode ser verificado e
atestado por quem olha para trás, depois de se ter libertado de uma situação
incômoda e difícil. Um cristão amadurecido da raça branca pode lembrar-se com
tristeza dos dias em que sinceramente admitia aquilo que lhe ensinaram a
respeito do preto, de que este “devia ficar no seu lugar”, e lembrar-se ao
mesmo tempo de suas lutas íntimas ao impacto dos princípios humanitários que
contradiziam seus injustos preconceitos. O capítulo 7 da Epístola aos Romanos
por certo nos dá uma boa ideia de algo dessa luta de Paulo antes de
converter-se.
Referindo-se à sua comissão (vv. 16 a 18), diz-se que Paulo
recebeu ordem para testificar aquilo que havia visto e aquilo que ainda ia ver.
Informou-se lhe também que sua missão o levaria a entrar em tais relações com
“o povo” (os judeus) e com os gentios, que haveria muitas ocasiões para
“livrá-lo” de não poucos atritos (v. 17). Sua obra seria a de “lhes abrir os
olhos, a fim de que se convertam das trevas à luz e do poder de Satanás a Deus,
para que recebam remissão de pecados e herança entre aqueles que são
santificados pela fé” em Jesus (v. 18). Em geral se entende que este versículo
se refere aos gentios; mas há razão para afirmar-se que todo ele pode
referir-se igualmente a judeus e gentios. Esta última interpretação calha
melhor com o ponto de vista dos Atos e com a interpretação que o próprio Paulo
nos dá do seu ministério.
Foi justamente por obedecer estritamente a esta comissão que Paulo
foi detido (vv. 19-21).
Do ponto de vista de Lucas, bem como do de Paulo, importa registrar este fato.
O verdadeiro judaísmo sobreviveu nessa missão, e não na de seus opositores.
Uma questão menor surge da afirmativa que Paulo fez de haver
pregado “por toda a terra da Judéia” (v. 20). Entendido literalmente, não se
pode harmonizar este versículo com Gálatas 1:22. Possivelmente houve algum lapso no texto, ou falta
algum dado para o exegeta.
A declaração sumária de Paulo é o clímax do seu discurso, em que
reafirma que estava anunciando nada mais que aquilo que fora antecipado por
Moisés e os profetas: que o Messias devia sofrer e ressuscitar, e assim ser a
luz tanto para judeus como para gentios (v. 22). Não há prova alguma de que os
judeus do século primeiro esperavam ou desejavam um Messias sofredor; mas o
elemento de sofrimento não fora omitido pelos profetas. A inclusão dos gentios
no plano divino de salvação também foi contemplada pelos profetas. E Paulo
insistiu em afirmar que a ênfase que estava dando a um Salvador sofredor, à
ressurreição e à missão entre os gentios podia ser encontrada igualmente na
tradição dos antigos e no verdadeiro judaísmo profético.
Paulo Constrange Agripa para Que Se Manifeste (26:24-29)
Festo achou confusa toda a controvérsia, e também a discussão
havida, e em especial se viu perplexo diante da declaração que Paulo fez, de
que judeus e gentios seriam iluminados por um Cristo padecente que ressuscitara
dentre os mortos (v. 23). Isto era muita coisa para ele, e, assim, em voz alta, disse: Estás
louco, Paulo, as muitas letras te fazem delirar” (v. 24). Porque o vocábulo grego
traduzido por “mania” ou “loucura” se relaciona com a palavra grega traduzida
por “profeta” ou “pessoa inspirada”, alguns comentadores acham que estas
palavras de Festo não são ofensivas e que davam o discurso de Paulo como
inspirado. É certo que o vocábulo tanto pode sugerir loucura como inspiração, e
para Festo as duas ideias podiam estar intimamente relacionadas.
Contudo, a réplica de Paulo nos esclarece que Festo não quis
apenas dizer que Paulo falava inspiradamente; Festo quis dizer que Paulo não estava
raciocinando corretamente, ou que Paulo não estava sendo inteiramente racional.
Paulo protestou, afirmando que o que dissera sobre a ressurreição era pura
verdade. Então Paulo se dirigiu a Agripa, visto estar naturalmente mais
relacionado com este do que com Festo, e o impressionou, buscando fazer com que
se manifestasse. Ele se dirigiu tão diretamente a Agripa que difícil lhe seria
evadir-se. Agripa não ousou dizer que não cria nos profetas (v. 27), e também
não quis ver-se arrastado a endossar pessoalmente o que Paulo afirmava a
respeito dos princípios evangélicos. Agripa revelou nisso a típica sagacidade
de um herodiano,
fugindo ao cerne da questão; e, assim fazendo, legou para os exegetas um enigma
que até hoje não conseguiram resolver.
De fato, não se sabe exatamente o que Agripa disse, ou quis dizer,
na resposta que deu a Paulo (v. 28). A Versão Autorizada inglesa traduz assim:
“Quase que tu me persuades a ser cristão”; é a tradução corrente, mas
indefensável. No entanto, dizer-se
exatamente o que Agripa quis expressar vai muito além da nossa ciência. De
início, podemos notar que os manuscritos não concordam sequer em dois pontos. A
evidência mais forte favorece a expressão “fazer-me cristão” e não “tornar-me cristão”. Admite-se quase
positivamente que a frase era esta — “fazer-me cristão”; mas esta pode trazer no
seu bojo duas ideias. Significaria “fazer-se cristão”? Ou, “fazer de outro
(Festo) um cristão”?
O modo do verbo “persuadir” também difere nos manuscritos e isto
faz variar a tradução. E também a frase que literalmente seria “em um pouco”
(o errado “quase” das traduções comuns) pode significar qualquer das seguintes
coisas: “brevemente”, “dentro em pouco”, “com pouco esforço”. A afirmativa de
Agripa, então, poderia ser: “Em suma, tu me estás persuadindo a fazer o papel
de cristão.” Também pode ser: “Em suma, tu me estás persuadindo a me fazer um
cristão”, isto é, ajudar a converter Festo. Fosse qual fosse o sentido das palavras de Agripa,
Paulo as tomou como uma evasiva. E isso fez com que Paulo se tornasse mais
ousado ao expressar seu desejo de que todos ali se tornassem tais qual ele —
exceto as cadeias.
Festo e Agripa Concordemente Reconhecem
que Paulo É Inocente (26:30-32)
Paulo se fizera um pregador e evangelista tão completo que os
dignitários se alegraram em reconhecer que Paulo nada devia, e merecia ser
solto. O único motivo de conservá-lo em custódia era o haver Paulo apelado para
César. Pode ser que a lei romana determinasse que, uma vez feita a apelação para César, o processo devia
prosseguir; ou pode ser que Festo simplesmente se escondesse atrás dessa
conclusão para evitar o esfriamento de suas relações com os judeus, caso
soltasse a Paulo. Para Lucas, coisa mais importante que estas considerações era o fato de que agora Festo, Agripa e Lísias reconheciam, todos, a inocência de
Paulo.
Bibliografia F. Stagg
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