Não a segurança material, mas a direção de Deus Mt 6.19-34
Na
primeira metade de Mateus 6 (vs. 1-18), Jesus descreve a vida particular do
cristão "no lugar secreto" (dando, orando, jejuando); na segunda
parte (vs. 19-34) ele trata dos nossos negócios públicos no
mundo (questões de dinheiro, de propriedades, de alimento, de bebida, de roupa
e de ambição). Os mesmos contrastes poderiam ser expressos em termos de nossas
responsabilidades "religiosas" e "seculares". Esta
diferença é enganosa, porque não podemos separar estes dois aspectos em
compartimentos herméticos. Na verdade, o divórcio entre o sagrado e o secular
na história da Igreja tem sido desastroso. Se somos cristãos, tudo o
que fazemos, por mais "secular" que possa parecer (como fazer
compras, cozinhar, fazer cálculos no escritório, etc), é
"religioso", no sentido de que é feito na presença de Deus e de
acordo com a sua vontade. Uma ênfase de Jesus neste capítulo é exatamente sobre
este ponto, que Deus está igualmente preocupado com as duas áreas da nossa
vida: a particular e a pública; a religiosa e a secular. Pois, de um lado,
"teu Pai celeste vê em secreto" (vs. 4, 6, 18) e, de outro,
"vosso Pai celestial sabe que necessitais de alimento, bebida e
roupa" (v. 32).
Ouvimos os
mesmos insistentes convites de Jesus, nas duas esferas, o chamado para sermos
diferentes da cultura popular: diferentes da hipocrisia do religioso (v. 1-18)
e, agora, também diferentes do materialismo do irreligioso (vs. 19-34). Embora
no começo do capítulo fossem principalmente os fariseus que estavam na mente de
Jesus, agora é ao sistema de valores dos "gentios" que ele nos incita
a renunciar (v. 32). Na verdade, Jesus coloca alternativas diante de nós em
cada estágio. Há dois tesouros (na terra e no céu, vs. 19-21), duas condições
físicas (luz e trevas, vs. 22, 23), dois senhores (Deus e as riquezas, v. 24) e
duas preocupações (nosso corpo e o reino de Deus, vs. 25-34). E não podemos pôr
os pés em duas canoas!
Mas, como
fazer a escolha? A ambição do mundo nos fascina fortemente. O encanto do
materialismo é difícil de se quebrar. Nesta seção, Jesus nos ajuda a escolher o
melhor. Ele destaca a insensatez do caminho errado e a sabedoria do certo. Como
nas seções anteriores, sobre a piedade e a oração, aqui, relativamente à
ambição, ele coloca o falso e o verdadeiro, um em oposição ao outro, de tal
modo que nos leva a compará-los e examiná-los por nós mesmos.
Este
tópico coloca-nos diante da grande urgência da nossa geração. A medida
que a população do mundo continua aumentando assustadoramente e os problemas
econômicos das nações se tornam cada vez mais complexos, os ricos continuam
ficando mais ricos e os pobres, mais pobres. Não podemos mais fechar os olhos diante
dos fatos. A antiga complacência do Cristianismo burguês foi perturbada. A
adormecida consciência social de muitos já foi despertada. Redescobriu-se que o
Deus da Bíblia está do lado dos pobres e necessitados. Os cristãos responsáveis
sentem desconforto quando pensam na abundância e estão procurando desenvolver
um estilo de vida simples, que seja adequado face às necessidades do mundo e,
por lealdade, de acordo com os ensinamentos e o exemplo do seu Mestre.
1. A questão do tesouro (vs.
19-21)
Não
acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem
corroem e onde ladrões escavam e roubam; 20mas ajuntai para vós outros
tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem
roubam; 21porque onde está o teu tesouro, aí estará também o
teu coração.
Aqui, o
ponto para onde Jesus dirige nossa atenção é a durabilidade comparativa dos
dois tesouros. Deveria ser fácil decidir qual dos dois ajuntar, ele dá a
entender, porque tesouros sobre a terra são corruptíveis e,
portanto, inseguros, enquanto que tesouros no céu são
incorruptíveis e, consequentemente, seguros. Afinal, se nosso objetivo é
ajuntar tesouros, presumivelmente nós nos concentraremos na espécie que vai
durar mais e que pode ser armazenada sem depreciação ou deterioração.
É
importante enfrentar franca e honestamente a questão: o que Jesus estava
proibindo, quando nos disse para não ajuntarmos tesouros para nós mesmos na
terra? Talvez seja melhor começarmos com uma lista do que ele não estava (e não
está) proibindo. Primeiro, não há maldição alguma quanto às propriedades
em si; as Escrituras não proíbem, em parte alguma, as propriedades
particulares. Segundo, "economizar para dias piores" não foi proibido
aos cristãos, nem fazer um seguro de vida, que é apenas uma espécie de economia
compulsória auto-imposta. Pelo contrário, as Escrituras louvam a formiga
que armazena no verão o alimento de que vai precisar no inverno, e declara que
o crente que não faz provisão para a sua família é pior do que um incrédulo (Pv 6:6ss;
l Tm 5:8.). Terceiro, não devemos desprezar mas,
antes, desfrutar as boas coisas que o nosso Criador nos concedeu
abundantemente (l Tm 4:3,4; 6:17.). Portanto, nem as propriedades, nem a
provisão para o futuro, nem o desfrutar dos dons de um Criador bondoso estão
incluídos na proibição dos tesouros acumulados na terra.
O que está, então?
O que Jesus proíbe a seus discípulos é a acumulação egoísta de
bens ("Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a
terra"); uma vida extravagante e luxuosa, a dureza de coração que não
deixa perceber as necessidades colossais das pessoas menos privilegiadas neste
mundo; a fantasia tola de que a vida de uma pessoa consiste na abundância de
suas propriedades (Lc 12:15.);
e o materialismo que acorrenta nossos corações à terra. O Sermão do Monte
repetidas vezes refere-se ao "coração" e, aqui, Jesus declara que o
nosso coração sempre segue o nosso tesouro, quer para baixo para a terra, quer
para o alto para o céu (v. 21). Resumindo, "acumular tesouros sobre a
terra" não significa ser previdente (fazer ajuizadas provisões para o
futuro), mas ganancioso (como o sovina que acumula e os materialistas que sempre
querem mais). Esta é a armadilha contra a qual Jesus nos adverte aqui.
"Sempre que o Evangelho é ensinado", escreveu Lutero, "e as
pessoas procuram viver de acordo com ele, surgem duas terríveis pragas: os
falsos pregadores, que corrompem o ensino, e, então, a Sra. Ganância,
que impede um viver justo."
O
"tesouro na terra", por nós cobiçado, Jesus nos lembra: "A
traça e a ferrugem destroem, e ... os ladrões o arrombam e roubam" (BLH).
A palavra grega para "ferrugem" (brasis) significa
"comer"; pode referir-se à corrosão causada pela ferrugem, mas
também a qualquer peste ou parasita devoradora. Naquele tempo, as traças
entravam facilmente nas roupas das pessoas, os ratos comiam os cereais
armazenados, pestes atacavam o que estivesse debaixo da terra, e os ladrões
entravam nos lares e levavam o que fosse possível. Não havia a menor segurança
no mundo antigo. E para nós, gente moderna, que procuramos proteger os nossos
tesouros com inseticidas, venenos contra ratos, ratoeiras, tintas à prova de
ferrugem e arames contra ladrões, mesmo assim eles se desintegram na inflação
ou na desvalorização ou nos colapsos econômicos. Mesmo que uma parte permaneça
através desta vida, nada podemos levar conosco para a outra. Jó estava certo:
"Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei (Jó 1:21.)."
Mas o
"tesouro no céu" é incorruptível. Que tesouro é esse? Jesus não
explica. Mas podemos dizer com toda certeza que "ajuntar tesouros no
céu" é fazer na terra alguma coisa cujos efeitos durem pela eternidade.
Jesus não estava, certamente, ensinando uma doutrina de méritos ou um
"tesouro de méritos" (como a Igreja Católica medieval ensinava), como
se pudéssemos acumular no céu, através de boas obras praticadas na terra, uma
espécie de crédito bancário do qual nós e outros pudéssemos sacar, pois tal
noção grotesca contradiz o Evangelho da graça que Jesus e seus apóstolos
ensinaram coerentemente. E, de qualquer modo, Jesus estava falando a discípulos que já tinham recebido a salvação de Deus.
Parece, antes, referir-se a coisas tais como: o desenvolvimento de um
caráter semelhante ao de Cristo (uma vez que todos nós podemos levá-lo conosco
para o céu); o aumento da fé, da esperança e da caridade, pois todas elas,
segundo Paulo, "permanecem" (1 Co
13:13.); o crescimento no conhecimento de Cristo,
o qual um dia veremos face a face; a tarefa ativa, por meio da oração e do
testemunho, de apresentar outros a Cristo, para que também possam herdar a vida
eterna; e o uso de nosso dinheiro nas causas cristãs, que é o único investimento
financeiro cujos dividendos são eternos.
Todas
estas atividades são temporais com consequências eternas. Este seria, então,
"o tesouro no céu". Nenhum ladrão pode roubá-lo, e nenhuma praga pode
destruí-lo, pois não há traças, nem ratos, nem assaltantes no céu. Portanto, o
tesouro no céu é seguro. Medidas de precaução para protegê-lo são desnecessárias.
Não precisa de apólices de seguro. É indestrutível. Portanto, parece que Jesus
está nos dizendo: "É um investimento seguro para vocês; nada poderia ser
mais seguro do que isto. É a única apólice de seguro que jamais perde o
seu valor."
2. A questão da visão (vs. 22,
23)
São os
olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será
luminoso; 23se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu
corpo estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que
grandes trevas serão!
Jesus
passa da comparativa durabilidade dos dois tesouros para o benefício relativo
de duas condições. O contraste agora é entre uma pessoa cega e uma pessoa que
tem visão, e, consequentemente, entre as trevas e a luz em que elas
respectivamente vivem. São os olhos a lâmpada do corpo. Não
é literal, naturalmente, como se fossem uma espécie de janela deixando a luz
entrar no corpo; mas é uma figura de linguagem facilmente inteligível. Quase
tudo que o corpo faz depende de nossa capacidade de ver. Precisamos ver para
correr, para pular, para dirigir um carro, para atravessar uma rua, para
cozinhar, para bordar, para pintar. O olho, pelo que é,
"ilumina" o que o corpo faz com as mãos e os pés. É verdade que os
cegos conseguem enfrentar sua situação maravilhosamente bem, aprendendo a fazer
uma porção de coisas sem os olhos, e desenvolvendo suas demais faculdades para
compensar a falta de visão. Mas o princípio continua: quem vê anda na luz,
enquanto que o cego permanece nas trevas. E a grande diferença entre a luz e as
trevas do corpo deve-se a esse pequenino mas complicado órgão, o
olho. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será
luminoso; se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em
trevas. Na cegueira total, as trevas são completas.
Tudo isto
é uma descrição de fatos. Mas também é uma metáfora. Com bastante frequência,
o "olho" nas Escrituras é equivalente ao "coração". Isto
é, "colocar o coração" e "fixar os olhos" em alguma coisa sãosinônimos.
Um exemplo será suficiente, no Salmo 119. No versículo 10 o salmista escreve:
"De todo o coração te busquei; não me deixes fugir aos teus mandamentos"
e, no versículo 18: "Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as
maravilhas da tua lei." Semelhantemente, aqui no Sermão do Monte, Jesus
passa da importância de se ter o coração no lugar certo (v.
21) para a importância de se ter os olhos bons e sadios.
A
argumentação parece ser esta: exatamente como nossos olhos afetam todo o nosso
corpo, a nossa ambição (onde fixamos nossos olhos e nosso coração) afeta toda a
nossa vida. Exatamente como o olho que vê dá luz ao corpo, uma ambição nobre e
sincera de servir a Deus e aos homens aumenta o significado da vida e lança luz
sobre tudo que fazemos. Repito: exatamente como a cegueira leva às trevas, uma
ambição ignóbil e egoísta (por exemplo, ajuntar tesouros para nós mesmos sobre
a terra) faz-nos mergulhar nas trevas morais. Ficamos intolerantes, desumanos,
grosseiros, despojando a vida de seu principal significado.
Tudo é uma
questão de visão. Se temos visão física, podemos ver o que estamos
fazendo e para onde vamos. Da mesma forma, se temos visão espiritual, se nossa
perspectiva espiritual está devidamente ajustada, então nossa vida fica cheia
de propósito e de incentivo. Mas se a nossa visão se torna anuviada pelos
falsos deuses e pelo materialismo, e nós perdemos nosso senso de valores,
então toda a nossa vida fica em trevas e não podemos ver para onde vamos.
Talvez a ênfase esteja, com muito mais força do que já sugeri, na perda da
visão causada pela ganância, porque, de acordo com o conceito bíblico, um
"olho mau" é um espírito sovina, avarento, e um "olho bom"
é o generoso. De qualquer forma, Jesus acrescenta novos motivos para ajuntarmos
um tesouro no céu. O primeiro é a sua grande durabilidade; o segundo resulta
dos benefícios atuais, aqui na terra, de uma visão assim.
3. A questão das riquezas (v. 24)
Ninguém
pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um, e amar ao
outro; ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às
riquezas.
Jesus
explica, agora, que além da escolha entre dois tesouros (onde vamos ajuntá-los)
e entre duas visões (onde vamos fixar os nossos olhos) jaz uma escolha ainda
mais básica: entre dois senhores (a quem vamos servir). É uma escolha entre
Deus e Mamom: "Não podeis servir a Deus e a Mamom" (ERC);
isto é, entre o próprio Criador vivo e qualquer objeto de nossa própria criação
que chamamos de "dinheiro" ("Mamom" é uma transliteração da
palavra aramaica para riqueza). Não podemos servir aos dois.
Algumas
pessoas discordam destas palavras de Jesus. Recusam-se a ser confrontadas com
uma escolha tão rígida e direta, e não veem a necessidade dela. Asseguram-nos
que é perfeitamente possível servir a dois senhores simultaneamente, por conseguirem
fazer isso muito bem. Diversos arranjos e ajustes possíveis parecem-lhes
atraentes. Ou eles servem a Deus aos domingos e a Mamom nos
dias úteis, ou a Deus com os lábios e a Mamom com o coração, ou a
Deus na aparência e a Mamom na realidade, ou a Deus com metade de
suas vidas e a Mamom com a outra.
Pois é
esta solução popular de comprometimento que Jesus declara ser impossível: Ninguém
pode servir a doissenhores . . . Não podeis servir a Deus e às riquezas (observe
o "pode" e o "não podeis"). Os pretensos conciliadores
interpretam mal este ensinamento, pois se esquecem da figura de escravo e dono
de escravo que se encontra por trás destas palavras. Como McNeile disse:
"Pode-se trabalhar para dois empregadores, mas nenhum escravo pode ser
propriedade de dois senhores", pois "ter um só dono e prestar serviço
de tempo integral são da essência da escravidão". Portanto, qualquer
pessoa que divide sua devoção entre Deus eMamom já a concedeu a Mamom,
uma vez que Deus só pode ser servido com devoção total e exclusiva. Isto
simplesmente porque ele é Deus: "Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a
minha glória, pois, não a darei a outrem. (Is
42:8; 48:11.)" Tentar dividir a nossa lealdade é optar pela
idolatria.
E quando
percebemos a profundidade da escolha entre o Criador e a criatura, entre o
Deus pessoal glorioso e essa coisinha miserável chamada dinheiro, entre a
adoração e a idolatria, parece inconcebível que alguém faça a escolha errada,
pois agora é uma questão não apenas de durabilidade e benefício comparativos,
mas sim de valor comparativo: o valor intrínseco de um e a intrínseca falta de
valor do outro.
4. A questão da ambição (vs.
25-34)
Por isso
vos digo: Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou
beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais
do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?26Observai as
aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo vosso
Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? 27Qual de
vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um cavado ao curso da sua vida? 28E por
que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do
campo: eles não trabalham nem fiam. 29Eu, contudo, vos afirmo
que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. 30Ora,
se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no
forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? 31Portanto não
vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? ou: Com que nos
vestiremos? 32porque os gentios é que procuram todas estas
cousas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; 33buscai,
pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas cousas vos
serão acrescentadas. 34Portanto, não vos inquieteis com o dia
de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio
mal.
É uma pena
que, nas igrejas, esta passagem seja frequentemente lida isoladamente, fora do
seu contexto. E, assim, o significado do Por isso vos digo introdutório
perde-se completamente. Portanto, devemos começar relacionando este "por
isso", com o ensinamento que levou Jesus a esta conclusão. Antes de nos
convocar a agir, ele nos convoca a pensar. Convida-nos a examinar clara e
friamente as alternativas que foram expostas, pesando-as cuidadosamente.
Queremos acumular tesouros? Então, qual das duas possibilidades é mais durável?
Queremos ser livres e objetivos em nossas atividades? Queremos servir ao melhor
dos senhores? Então devemos considerar qual é o mais digno da nossa devoção.
Apenas depois que tivermos assimilado em nossas mentes a durabilidade
comparativa dos dois tesouros (o corruptível e o incorruptível) e o valor
comparativo dos dois senhores (Deus e Mamom), estaremos prontos a fazer a
escolha. E só depois que tivermos feito a nossa escolha — o tesouro celeste, a
luz, Deus — estaremos preparados para ouvir as palavras que seguem: Por
isso vos digo como deveis vos comportar: Não andeis ansiosos
pela vossa vida. . . nem pelo vosso corpo. . . buscai,
pois, em primeiro lugar o seu reino e a sua justiça (vs. 25, 33). Em
outras palavras, nossa escolha básica quanto a qual dos dois mestres desejamos
servir afetará radicalmente nossa atitude para com ambos. Não ficaremos
ansiosos sobre um deles, já que o rejeitamos, mas nos concentraremos, mente e
energia, no outro, a quem escolhemos. E, ao invés de nos perdermos em nossas
próprias preocupações, buscaremos em primeiro lugar aquilo que
interessa a Deus.
A
linguagem de Cristo sobre a busca (contrastando os gentios no
que os seus discípulos devem buscar em primeiro lugar; vs. 32,
33) introduz-nos à questão da ambição. Jesus considerou que todos os seres
humanos "buscam" alguma coisa. Não é natural que as pessoas fiquem à
deriva, sem alvo na vida, como um plâncton. Precisamos de alguma coisa pela
qual viver, algo que dê significado à nossa existência, alguma coisa para
"buscar", alguma coisa sobre a qual colocar o nosso coração e a nossa
mente. Embora poucos hoje em dia usem a linguagem dos antigos filósofos gregos,
o que nós buscamos, de fato, é aquilo que eles chamavam de "o Bem
Supremo", para lhe dedicarmos as nossas vidas. Provavelmente,
"ambição" é o termo equivalente moderno. É verdade que, no
dicionário, esta palavra significa "um forte desejo de alcançar o
sucesso" e, portanto, de um modo geral, a sua imagem é ruim, pois tem um
sabor egoísta. É neste sentido que Shakespeare, em sua peça "Henrique
VIII", faz este apelo a Thomas Cromwell: "Cromwell, eu te desafio,
põe de lado a ambição. Por causa desse pecado caíram anjos . .
." Mas a "ambição" pode igualmente referir-se a fortes desejos,
altruístas em lugar de egoístas, piedosos ao invés de mundanos. Resumindo, é
possível ter "ambições para Deus". A ambição refere-se aos alvos de
nossa vida e ao incentivo que temos de atingi-los. A ambição de uma pessoa é
aquilo que a impele: revela a mola principal de suas ações, suas mais secretas
motivações. Isto, então, é o que Jesus estava dizendo ao definir, na
contracultura cristã, o que devemos buscar "em primeiro lugar".
Novamente,
nosso Senhor simplifica o assunto para nós, reduzindo em apenas duas as
alternativas possíveis de alvos na vida.
Nesta
seção, ele as confronta uma com a outra, insistindo com os seus discípulos que
não se preocupem com a própria segurança (alimento, bebida e vestimentas),
pois essa é a obsessão dos "gentios", que não o conhecem; mas que se
preocupem antes com o reino de Deus e com a justiça divina, bem como com a sua
propagação e o seu triunfo no mundo.
a. Ambição falsa ou secular: nossa
própria segurança material A maior
parte deste parágrafo é negativa. Três vezes Jesus repete a sua proibição Não
andeis ansiosos (vs. 25, 31, 34), ou "Não fiquem aflitos". E
a preocupação que ele nos proíbe é quanto ao alimento, quanto à bebida e quanto
à roupa: Que comeremos? Que beberemos? Que vestiremos? (v.
31). Mas esta é precisamente "a trindade dos cuidados do mundo": porque
os gentios é que procuram todas estas cousas (v. 32). Basta olhar para
a propaganda na televisão, nos jornais e nos transportes públicos para vermos
uma vivida ilustração moderna do que Jesus ensinou há cerca de dois mil anos
atrás.
Há alguns
anos recebi um exemplar gratuito de Accent, uma nova revista,
muito bem apresentada, cujo subtítulo é "A Boa Vida em Foco" (Accent on Good Living).
Continha atraentes anúncios de champanha, cigarros, alimentos, roupas,
antiguidades e tapetes, junto com a descrição de um fim-de-semana para compras
esotéricas em Roma. Havia artigos sobre como possuir um computador na cozinha;
como ganhar uma viagem de luxo por mar ou, em lugar disso, cem dúzias de uísque
escocês; e como quinze milhões de mulheres não podem estar erradas na escolha
de cosméticos. Prometia, então, no exemplar do mês seguinte, artigos
sedutores sobre férias no Caribe, roupa de cama aconchegante, roupa íntima
elegante para o frio, e as delícias da carne de veado e de tâmaras importadas.
Do começo ao fim preocupava-se com o bem-estar do corpo e como alimentá-lo,
vesti-lo, aquecê-lo, refrescá-lo, relaxá-lo, entretê-lo, enfeitá-lo e
estimulá-lo.
Por favor,
não me entendam mal. Jesus Cristo não negou nem desprezou as necessidades do
corpo. Para sedizer a verdade, foi ele que o criou, e dele ele cuida. E acabou
de nos ensinar a orar: "O pão nosso de cada dia dá-nos hoje". O que,
então, ele está a dizer? Está enfatizando que ficar absorto pelo conforto
material é uma falsa preocupação. De um lado, não é produtivo (exceto pelas
úlceras e pelas preocupações novas que surgem); por outro, não é necessário
(porque "vosso Pai celeste sabe que necessitais . . .", vs.
8 e 32); mas especialmente porque não vale a pena. Indica uma falsa visão dos
seres humanos (como se fossem apenas corpos precisando de alimento, água,
roupas e casa) e da vida humana (como se fosse apenas um mecanismo fisiológico
precisando de proteção, lubrificação e combustível). Uma preocupação exclusiva
com alimento, bebida e roupas poderia se justificar apenas se a sobrevivência
física fosse tudo nesta vida. Se vivêssemos apenas para viver,
então, sim, o sustento do nosso corpo seria a nossa principal preocupação. Por
isso entende-se que, em condições críticas de fome, a luta pela sobrevivência
tenha precedência sobre outras coisas. Mas fazê-lo em circunstâncias comuns
expressa um conceito reducionista do homem, que é totalmente inaceitável.
Degrada-o ao nível dos animais, das aves e das plantas. Mas a grande maioria
dos anúncios de hoje é dirigida para o corpo: roupa íntima visando torná-lo
mais atraente, desodorantes para mantê-lo perfumado, bebidas alcoólicas para
animá-lo quando está cansado . . . Esta preocupação provoca as
seguintes perguntas: o bem-estar físico é um objetivo válido para lhe
devotarmos nossas vidas? Não tem a vida humana mais significado do que isto? Os
gentios é que procuram todas estas comas. Que procurem! Mas, quanto a
vocês, meus discípulos, Jesus dá a entender, essas coisas são um alvo
absolutamente sem valor, pois não constituem o "Supremo Bem" da
vida.
Agora
precisamos esclarecer o que Jesus está proibindo, e que motivos ele dá para
essa proibição. Primeiro, não está proibindo o pensamento. Pelo
contrário, está estimulando-o quando prossegue ordenando-nos a olhar para as
aves e flores e "considerar" como Deus cuida delas. Segundo, não
está proibindo a previdência. Já mencionei como a Bíblia aprova a formiga.
Também os passarinhos, os quais Jesus elogiou, fazem provisão para o futuro,
construindo ninhos, botando e chocando ovos, e alimentando os filhotes. Muitos
migram para climas mais quentes antes do inverno (o que é um exemplo notável de
previdência, embora instintiva), e alguns até armazenam alimento, como os
picanços, que formam a sua própria despensa espetando insetos sobre espinhos.
Portanto, não encontramos aqui nada que impeça os cristãos de fazer planos para
o futuro ou de dar passos sensatos para a sua realização. O que Jesus proíbe
não é o raciocínio nem a previdência, mas a preocupação ansiosa. Este é o
significado da ordem më merimnate. É a palavra que foi
usada em relação aMarta, que estava "distraída" com o serviço da
casa; e também em relação à boa semente lançada entre os espinhos, abafada
pelos "cuidados" da vida; e ainda foi usada por Paulo na injunção:
"Não andeis ansiosos de cousa alguma"( Lc 10:40; 8:14; Fp 4:6.). É como o Rev.
Ryle expressou: "A provisão prudente para o futuro é boa; a fadiga, o
desgaste, a ansiedade que atormenta são ruins."
Por que
são ruins? Jesus replica, argumentando que esse tipo de preocupação obsessiva é
incompatível, tanto com a fé cristã (vs. 25-30) como com o bom senso (v. 34);
mas se detém mais no primeiro ponto.
1. A preocupação é incompatível com a fé cristã (vs. 25-30). No
versículo 30 Jesus atinge aqueles que ficam ansiosos por causa de roupa e de
comida, chamando-os de "homens de pequena fé". Os motivos que ele
apresenta, pelos quais deveríamos confiar em Deus em lugar de ficar ansiosos,
são ambos argumentos a fortiori("quanto
mais"). Um foi extraído da experiência humana e argumenta partindo do
maior para o menor; o outro vem da experiência sub-humana (aves e flores) e
argumenta do menor para o maior.
Nossa
experiência humana é a seguinte: Deus criou e agora sustenta a nossa vida; ele
também criou e continua sustentando o nosso corpo. Este é um fato da
experiência diária. Nós não nos fizemos, nem nos mantemos vivos. A nossa
"vida" (pela qual Deus é o responsável) é obviamente mais importante
do que o alimento e a bebida que nos nutrem. Semelhantemente, o nosso
"corpo" (pelo qual Deus também é responsável) é mais importante do
que a roupa que o cobre e aquece. Pois bem, se Deus já cuida do maior (nossa
vida e nosso corpo), não podemos confiar nele para cuidar do menor (nosso
alimento e nossa roupa)? A lógica é inevitável e, no versículo 27, Jesus a
reforça com a pergunta: Qual de vós, por ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado ao curso da sua vida? Não está claro se a última
palavra dessa pergunta (kêlikia) deveria ser traduzida por
"curso da sua vida" (ERAB) ou "estatura" (ERC); pode
significar as duas coisas. Acrescentar meio metro à nossa estatura seria
um feito realmente notável, embora Deus o faça a todos nós entre a nossa
infância e a idade adulta. Acrescentar um período de tempo ao curso de nossa
vida também está fora de nosso alcance; um ser humano não pode consegui-lo
sozinho. Na verdade, ao invés de alongar a vida, a preocupação "pode muito
bem encurtá-la", como todos sabemos. Por isso, exatamente como
deixamos essas coisas aos cuidados de Deus (pois certamente estão fora do nosso
alcance), não seria sensato confiar nele para as coisas de menor importância,
como o alimento e a roupa?
A seguir
Jesus volta-se para o mundo sub-humano e argumenta de outra maneira. Ele usa
as aves como ilustração do cuidado divino em alimentar (v. 26) e as flores para
ilustrar o seu cuidado no vestir (vs. 28-30). Em ambos os casos, ele nos manda
"olhar" ou "considerar", isto é, pensar sobre os fatos do
cuidado providencial de Deus nesses dois casos. Alguns leitores sabem que eu
mesmo tenho sido, desde a minha meninice, um entusiástico observador de
pássaros. Sei, naturalmente, que essa atividade é considerada por alguns como
um passatempo bastante excêntrico; olham-me com divertimento e condescendência.
Mas declaro que tenho apoio bíblico para esta atividade. "Observai as aves
do céu", disse Jesus! Na verdade, o assunto é sério, pois o verbo grego
nesta ordem de Jesus (emblepsate eis) significa
"fixe os olhos em (algo), para enxergar bem". Quando nos interessamos
pelas aves e pelas flores (e devemos, tal como o nosso Mestre, estar
conscientes do mundo natural que nos cerca, sendo gratos por ele), ficamos
sabendo que os pássaros não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros, mas
mesmo assim vosso Pai celeste os sustenta, e que os
lírios do campo (anêmonas, papoulas, íris e gladíolos, todos têm sido
sugeridos como alternativas para os lírios, embora a referência seja
generalizada a todas as lindas flores da primavera na Galiléia) . . . não trabalham
nem fiam, mas o nosso Pai celeste veste assima todas,
ainda mais suntuosamente que Salomão, em toda a sua glória. Sendo
assim, não podemos confiar nele para nos alimentar e nos vestir, já que temos
muito mais valor do que as aves e as flores? Pois ele não veste atéa erva do
campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno?
"Vejam",
escreve Martinho Lutero com muita beleza, "ele está fazendo das aves
nossos professores e mestres. É uma grande e permanente vergonha para nós o
fato de, no Evangelho, um frágil pardal se tornar teólogo e pregador para o
mais sábio dentre os homens . . . Portanto, sempre que você ouvir a
voz de um rouxinol, está ouvindo um excelente pregador . . . É como se ele
estivesse dizendo: 'Eu prefiro estar na cozinha do Senhor. Ele fez o céu e a
terra, e ele mesmo é o cozinheiro e o anfitrião. Todos os dias ele aumenta e
nutre inúmeros passarinhos em sua mão'." Semelhantemente, desta vez
citando Spurgeon:
"Maravilhosos lírios, como vocês
reprovam o nosso tolo nervosismo!"
Não nos tocam estas singelas rimas?
Disse a rolinha ao pardal:
"Gostaria de saber Por que os homens, ansiosos,
Nunca param de correr!"
Respondeu o pardalzinho: "Minha amiga, eu penso assim:
Não sabem que o Pai celeste Cuida de ti e de mim!"
É uma
figura encantadora, mas não um reflexo estritamente exato do ensinamento de
Jesus, pois ele não disse que as aves têm um Pai celeste, mas sim que nós o
temos, e que, se o Criador cuida de suas criaturas, podemos ter certeza de que
o Pai também cuidará dos seus filhos.
2. Problemas relacionados com a fé cristã. Preciso, a esta altura, fazer uma
digressão para comentar três problemas relacionados com a fé cristã que,
segundo Jesus, deve ser como a de uma criança. Todos os três são problemas
grandes e só podem ser abordados de leve mas, considerando que eles surgem
em nossas mentes por causa da promessa básica de nosso Senhor (de que o Pai
celeste vai alimentar-nos e vestir-nos) seria errado fugir deles. Vou
especificá-los negativamente, em termos de três liberdades que a fé não toma
à luz da promessa de Deus, ou de três imunidades que a sua promessa não nos
dá.
Primeiro, os
crentes não estão isentos de ganhar a sua própria vida. Não podemos
ficar sentados numa poltrona, girando os polegares, murmurando "meu Pai
celestial provera", sem fazer nada. Temos de trabalhar. Como Paulo disse
mais tarde: "Se alguém não quer trabalhar, também não coma (2Ts3:10.)."
Com sua simplicidade característica, Lutero escreve: "Deus . . . não tem
nada a ver com os preguiçosos, com os glutões displicentes; eles agem como se
apenas devessem ficar sentados à espera de que Deus lhes atire na boca um ganso
assado."
Jesus usou
as aves e as flores como evidências da capacidade de Deus para nos alimentar e
vestir, conforme vimos. Mas como Deus alimenta as aves? Poderíamos responder
que ele não o faz, pois elas se alimentam sozinhas! Jesus era um observador
meticuloso. Ele sabia perfeitamente bem quais são os hábitos alimentares dos
pássaros; sabia que alguns comem sementes, outros comem cadáveres e outros
comem peixes, enquanto que outros ainda são insetívoros, predadores ou
lixeiros. Deus os alimenta a todos. Mas o modo como o faz não é estendendo-lhes
uma mão divina cheia de comida, mas providenciando na natureza os recursos
para que eles se alimentem. Pode-se dizer o mesmo das plantas. "As flores
não fazem o trabalho dos homens no campo ('não trabalham'), nem o trabalho das
mulheres em casa ('não fiam')", mas Deus as veste. Como? Não milagrosamente,
mas através de um processo complexo que arranjou, em que elas extraem
do sol e do solo o seu sustento.
O mesmo
acontece com os seres humanos. Deus supre, mas nós temos de cooperar. Hudson
Taylor aprendeu esta lição em sua primeira viagem à China, em 1853. Quando uma
tempestade violenta na costa gaulesa ameaçou o navio, ele achou que seria
desonrar a Deus usar um salva-vidas. Por isso, desfez-se do seu. Mais tarde,
entretanto, percebeu o seu erro: "O uso de meios não diminui a nossa fé em
Deus, e a nossa fé em Deus não impede que usemos quaisquer meios que ele tenha
fornecido para a realização dos seus propósitos".
Semelhantemente,
Deus não coloca todos os seus filhos na situação do profeta Elias, nem lhes dá
alimento milagrosamente por meio de anjos ou corvos mas, antes, através de
meios mais naturais: fazendeiros, moleiros, granjeiros, peixeiros, açougueiros,
merceeiros e outros. Jesus insiste conosco sobre a necessidade de uma confiança
despretensiosa em nosso Pai celeste, mas ele sabe que a fé não é ingênua
(ignorante das causas secundárias) nem arcaica (incompatível com a ciência
moderna). Segundo, os crentes não estão isentos da responsabilidade
para com os outros. Digo isso em relação ao segundo problema, que é
mais de providência do que de ciência. Se Deus promete alimentar e vestir os
seus filhos, por que há tanta gente subnutrida e mal vestida? Eu não poderia
dizer levianamente que Deus cuida só dos seus próprios filhos, e que os pobres
que têm falta de alimento e roupa adequada são todos incrédulos que estão fora
do seu círculo familiar, pois certamente há pessoas cristãs em algumas regiões
atacadas pela seca e pela fome, as quais passam toda espécie de necessidades.
Não me parece haver uma solução simples para este problema. Mas é preciso
destacar um ponto importante, isto é, que a principal causa da fome não é a
falta da provisão divina, mas uma injusta distribuição por parte do homem. A
verdade é que Deus forneceu recursos amplos na terra e no mar. A terra produz
plantas que dão sementes e árvores que dão frutos. Os animais, as aves e os
peixes que ele criou são frutíferos e multiplicam-se. Mas o homem açambarca,
desperdiça ou estraga esses recursos, e não os distribui. Parece significativo que,
no próprio Evangelho de Mateus, o mesmo Jesus que aqui afirma que nosso Pai aumenta
e veste os seus filhos, mais tarde diz que nós mesmos devemos
alimentar os famintos e vestir os nus, e que seremos julgados de acordo
com isso. Sempre é importante permitir que as Escrituras interpretem as
Escrituras. O fato de Deus alimentar e vestir os seus filhos não nos isenta da
responsabilidade de sermos seus agentes para isso. Terceiro, os crentes
não estão isentos das dificuldades. É verdade que Jesus proíbe que o
seu povo se preocupe. Mas estar livre de preocupações e
estar livre de dificuldades não é a mesma coisa. Cristo
nos manda deixar de lado a ansiedade, mas não promete que seremos imunes a
todos os infortúnios. Pelo contrário, há em seus ensinamentos muitas
indicações de que ele sabia o que era a calamidade. Assim, embora Deus vista
a erva do campo, não impede que ela seja cortada e queimada. Deus
protege até mesmo os pardais, que são tão comuns e de um valor tão mínimo que
se vendem dois por um real e cinco por dois reais, indo mais um de quebra.
"Nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai" (Mt 10:29; cf. 12:6.), disse Jesus. Mas
os pardais caem ao chão e são mortos. Sua promessa não foi que eles não
cairiam, mas que isto não aconteceria sem o conhecimento e consentimento de
Deus. As pessoas também caem, e os aviões, também. As palavras de Cristo não
podem ser tomadas como uma promessa de que a lei da gravidade será revogada em
nosso benefício, mas sim que Deus sabe a respeito dos acidentes e que ele os
permite. Mais ainda, é significativo que, no final deste parágrafo, o motivo
por que Jesus diz que não devemos ficar inquietos com o dia de amanhã é
o seguinte: basta ao dia o seu próprio mal (v. 34). Portanto,
haverá "cuidados" (kakia, "males"). A
libertação que um cristão tem da ansiedade não se deve a alguma garantia de
ausência de cuidados, mas por ser a preocupação (que examinaremos mais tarde)
uma insensatez, e especialmente pela confiança que temos de que Deus é nosso
Pai, que até mesmo a permissão para o sofrimento está dentro da órbita do seu
cuidado (cf.Jó 2:10.), e que "todas as cousas cooperam para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu
propósito" (Rm8:28.).
Esta foi a certeza
que fortaleceu o Dr. Helmut Thielicke, ao pregar uma série de sermões
sobre o Sermão do Monte na Igreja de São Marcos, em Stuttgart, durante aqueles
terríveis anos (1946-1948) imediatamente após a segunda guerra mundial.
Frequentemente aludia ao sonido das sirenes antiaéreas que durante a guerra
alertavam o povo de ainda mais devastações e mortes provocadas pelas bombas dos
aliados. O que a libertação da ansiedade poderia significar em tais
circunstâncias? "Conhecemos a visão e o barulho das casas desmoronando em chamas
. . . Nossos próprios olhos viram as chamas rubras e nossos próprios
ouvidos ouviram os estrondos, os desmoronamentos e os gritos." Em tal
cenário, ordenar que olhassem para as aves e os lírios poderia parecer muito
falso. "Não obstante", o Dr. Thielicke prosseguiu,
"acho que devemos parar e ouvir quando este homem, cuja
vida na terra teve muito pouco de 'passarinhos e flores', aponta-nos para a
despreocupação deles. Será que as tenebrosas sombras da cruz já não se
espalhavam sobre esta hora em que ele pregou o Sermão do Monte?". Em
outras palavras, é razoável confiar no amor de nosso Pai celeste, até mesmo nos
momentos de dificuldades cruéis, porque temos o privilégio de ver esta
revelação em Cristo e na sua cruz.
Portanto,
os filhos de Deus não têm a promessa de que ficarão livres do trabalho, nem da
responsabilidade, nem das dificuldades, mas apenas da preocupação. Esta, sim,
nos é proibida: é incompatível com a fé cristã.
3. A preocupação é incompatível com o bom senso (v. 34). Retornando de nossa digressão sobre os
problemas da fé, temos agora de destacar que a preocupação é tão incoerente com
o bom senso quanto o é com a fé cristã. No versículo 34, Jesus menciona o hoje e
o amanhã. Toda a preocupação é sobre o amanhã, quer
seja relacionada com a roupa ou o alimento ou qualquer outra coisa; mas toda a
preocupação é experimentada hoje. Sempre que ficamos ansiosos,
ficamos preocupados no momento presente sobre alguma coisa que vai acontecer
no futuro. Entretanto, esses temores sobre o amanhã, que
sentimos com tanta força hoje, talvez não se concretizem. O
conselho popular "não se preocupe, talvez não aconteça nunca", sem
dúvida não é nada simpático, mas perfeitamente verdadeiro. As pessoas se
preocupam com os exames, ou com um emprego, ou com o casamento, ou com a
saúde, ou com algum empreendimento . . . Mas tudo isso é fantasia.
"Os temores podem ser mentirosos"; e geralmente o são. Muitas
preocupações, talvez a maioria delas, jamais acontecerão.
Portanto,
a preocupação é uma perda de tempo, de pensamentos e de energia nervosa.
Precisamos aprender a viver um dia de cada vez. Devemos, naturalmente, planejar
o futuro, mas não nos preocupar com ele. "Vivam um dia de cada vez",
ou "Bastam a cada dia suas próprias dificuldades". Portanto, por que
antecipá-las? Se o fizermos, nós as multiplicaremos, pois, se nossos temores
não se concretizarem, teremos nos preocupado em vão; no caso de se
concretizarem, estaremos nos preocupando duas vezes em vez de uma. De qualquer
forma é tolice: a preocupação aumenta a nossa perturbação.
Chegou o
momento de fazer uma síntese do que Jesus disse sobre as falsas ambições do
mundo. Preocupar-se com coisas materiais, de modo que elas monopolizem a nossa
atenção, absorvam a nossa energia e nos atormentem com ansiedade é incompatível
com a fé cristã e com o bom senso. É falta de confiança em nosso Pai celeste
e, francamente, uma estupidez. É isto que os pagãos fazem; mas é totalmente
impróprio e indigno para os cristãos. Portanto, assim como Jesus já nos
convocou no Sermão para uma justiça maior, para um amor mais amplo e para uma
piedade mais profunda, agora ele nos convoca para uma ambição mais alta.
b. Ambição verdadeira ou cristã: o reino
e a justiça de Deus. É importante
examinar os versículos 31, 32 e 33 juntos. O versículo 31 repete a proibição
contra a ansiedade pelo alimento, pela bebida e pela roupa. O v. 32 acrescenta: Os
gentios é que procuram todas estas cousas. Isto mostra que, no
vocabulário de Jesus, "procurar" e "ficar ansioso" são
intercambiáveis. Ele não está falando tanto de ansiedade, mas de ambição. A
ambição dos pagãos está focalizada nas necessidades materiais. Mas isto não
pode acontecer com os cristãos, em parte porque vosso Pai celeste sabe
que necessitais de todas elas, mas, principalmente, porque estas
coisas não constituem objetivo apropriado ou digno da busca do cristão. Ele
deve ter algo diferente, algo mais elevado, como o Bem Supremo, para procurar
com toda a energia; não coisas materiais, mas valores espirituais; não o seu
próprio bem, mas o de Deus; não alimento e roupa, mas o reino e a justiça de
Deus. Isto nada mais é do que a continuidade dos ensinamentos implícitos na
oração do Pai-Nosso. De acordo com isso, os cristãos devem reconhecer as
necessidades do corpo ("o pão nosso de cada dia dá-nos hoje"),
embora nossa preocupação prioritária seja com o nome, com o reino e com a
vontade de Deus. Não podemos orar o Pai-Nosso até que nossas ambições sejam
purificadas. Jesus nos diz para "buscar primeiro o reino de Deus e a sua
justiça"; na oração do Pai-Nosso, transformamos esta busca suprema em
oração.
1. Buscar primeiro o reino de Deus. Quando Jesus falou do reino de Deus, não se referia à soberania geral de
Deus sobre a natureza e a História, mas àquele governo específico sobre o seu
próprio povo, o qual ele mesmo inaugurou e que começa na vida de qualquer
pessoa quando ela se humilha, se arrepende, crê, submete-se a ele e nasce de
novo. O reino de Deus é Jesus Cristo governando
o seu povo, com exigências e bênçãos, que desconhecem meios-termos. "Buscar
primeiro" este reino é desejar, como coisa de primordial importância, a
propagação do reino de Jesus Cristo. Tal desejo começará em nós mesmos, até que
cada setor de nossa vida (lar, casamento e família, moralidade pessoal, vida
profissional e ética comercial, saldo bancário, imposto de renda, estilo de
vida, cidadania) seja submetido, prazerosa e francamente, a Cristo. Esse
desejo continuará, em nosso ambiente imediato, com a aceitação da responsabilidade
evangelística para com nossos parentes, colegas, vizinhos e amigos. E também
atingirá a preocupação pelo testemunho missionário mundial da Igreja.
Temos,
então, de ser claros sobre a verdadeira motivação missionária. Por que
desejamos a propagação do Evangelho por todo o mundo? Não por causa de um
imperialismo ou triunfalismo iníquo, quer para nós mesmos, para a Igreja ou até
mesmo para o "Cristianismo". Nem apenas porque a evangelização faz
parte de nossa obediência cristã (embora o faça). Nem primariamente para
tornar outras pessoas felizes (embora isso aconteça). Mas especialmente porque
a glória de Deus e do seu Cristo estão em jogo. Deus é Rei, inaugurou seu reino
de salvação através de Cristo, e tem o direito de governar a vida de suas criaturas.
Nossa ambição, então, é buscar primeiro o seu reino, acalentar o desejo ardente
de que o seu nome receba dos homens a honra a que tem direito.
Conceder
prioridade aos interesses do reino de Deus aqui e agora não é perder de vista o
seu alvo além da História, pois a presente manifestação do reino é apenas
parcial. Jesus falou também de um reino futuro de glória e nos disse que
orássemos por sua vinda. Portanto, "buscar primeiro o reino" inclui o
desejo e a oração por sua consumação no fim dos tempos, quando todos os
inimigos do Reino forem colocados sob os seus pés e o seu reino for
incontestável.
2. Buscar primeiro a justiça de Deus. Não ficou claro por que Jesus fez distinção entre o seu reino e
a sua justiça,como ideias gêmeas, mas de objetivos separados, em
nossa prioritária busca cristã. Porque o reino de Deus é um reino justo e, já
no Sermão do Monte, Jesus nos ensinou a termos fome e sede de justiça, a
estarmos prontos a ser perseguidos por causa dele e a evidenciarmos uma
justiça maior do que a dos escribas e fariseus. Agora ele nos manda buscar
primeiro a justiça de Deus, além de buscar primeiro o reino de Deus.
Vou fazer
uma tentativa de explicar a diferença entre os dois. O reino de Deus existe
apenas onde Jesus Cristo é conscientemente reconhecido. Estar no seu reino é
sinônimo de desfrutar da sua salvação. Apenas os que nasceram de novo viram e
entraram no seu reino. E buscá-lo em primeiro lugar é propagar as boas novas
da salvação em Cristo.
Mas a justiça de
Deus é (pelo menos argumentavelmente) um conceito mais amplo do que o reino de
Deus. Inclui aquela justiça individual e social à qual se fez referência
anteriormente no Sermão. E Deus, sendo ele mesmo um Deus justo, deseja a
justiça em cada comunidade humana, não apenas em cada comunidade cristã. Os
profetas hebreus condenaram a injustiça não só em Israel e Judá, mas também
entre as nações pagãs à volta. O profeta Amos, por exemplo, advertiu que o
juízo de Deus cairia sobre a Síria, Filistia, Tiro, Edom,Amom e Moabe por
causa de sua crueldade na guerra e outras atrocidades, como também cairia sobre
o povo de Deus. Deus odeia a injustiça e ama a justiça em qualquer lugar. O
Pacto de Lausanne, estruturado no Congresso sobre Evangelização do Mundo, em
julho de 1974, inclui um parágrafo sobre a "responsabilidade social
cristã", que começa assim: "Afirmamos que Deus é o Criador e Juiz de
todos os homens. Portanto, partilhamos de sua preocupação com a justiça e com
a reconciliação de toda a sociedade humana."
Um dos
propósitos de Deus para a sua comunidade nova e redimida é que, através dela, a
sua justiça se faça agradável (na vida pessoal, familiar, comercial, nacional e
internacional), e por isso a recomenda a todos os homens. Então as pessoas que
estão fora do reino de Deus vão vê-la e desejá-la, e a justiça do reino de Deus
transbordará, por assim dizer, sobre o mundo dos não-cristãos.
Naturalmente a profunda justiça do coração, que Jesus enfatizou no Sermão, é
impossível, a não ser nos que foram regenerados; mas certa porção de
justiça é possível na sociedade não-regenerada: na vida pessoal, nos padrões
familiares e na decência pública. Mas o cristão deseja ir muito além
disso e ver as pessoas literalmente trazidas para dentro do reino de Deus
através da fé em Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, não deveríamos nos envergonhar
de declarar que, fora do círculo do reino, Deus também prefere a justiça à
injustiça, a liberdade à opressão, o amor ao ódio, a paz à guerra.
Se é assim
(e não vejo como isso poderia ser contestado), então buscar primeiro o
seu reino e a sua justiça pode-se dizer que abrange nossas
responsabilidades cristãs evangelísticas e sociais, tanto quanto as metáforas
do "sal" e da "luz" de Mateus 5. A fim de buscar primeiro o
reino de Deus temos de evangelizar, uma vez que o reino só se propaga
quando o evangelho de Cristo é pregado, ouvido, crido e obedecido. A fim de
buscar primeiro a justiça de Deus, temos também de evangelizar (pois a justiça
interior do coração torna-se impossível de outro modo), mas também temos de nos
envolver em atividades e empreendimentos sociais para propagar por toda a
comunidade aqueles padrões mais elevados de justiça que são agradáveis a Deus.
Qual é,
então, a nossa ambição cristã? Todos nós somos ambiciosos de ser ou fazer
alguma coisa, geralmente desde os mais tenros anos. As ambições da infância
tendem a seguir certos protótipos; por exemplo: ser cowboy, astronauta ou
bailarina. Os adultos também têm os seus próprios protótipos; por exemplo:
ficar rico, famoso ou poderoso. Mas, em última análise, só há duas ambições
possíveis para os seres humanos. Vimos até agora como Jesus comparou a
verdadeira com a falsa ambição, a secular ("gentia") com a cristã, a
material com a espiritual, os tesouros da terra com os tesouros do céu, o
alimento e a roupa com o reino e a justiça de Deus. Mas, acima e além de tudo
isso, fica um contraste ainda mais fundamental. No final, exatamente como há
apenas dois tipos de piedade, a egocêntrica e a teocêntrica, também existem
apenas dois tipos de ambição: podemos ser ambiciosos para nós mesmos ou para
Deus. Não há uma terceira alternativa.
As
ambições voltadas para o ego podem ser bastante modestas (o suficiente para
comer, beber e vestir, como no Sermão) ou podem ser grandiosas (uma casa maior,
um carro mais possante, um salário melhor, uma reputação mais influente, mais
poder). Mas, modestas ou não, são ambições dirigidas a mim mesmo: meuconforto, minha riqueza, meu status, meu poder.
As
ambições voltadas para Deus, entretanto, para serem
dignas dele, nunca devem ser modestas. Há algo inerentemente impróprio em
se ter pequenas ambições para Deus. Como poderíamos nos contentar em que
ele adquira só mais um pouquinho de honra no mundo? Não. Quando percebemos que
Deus é Rei, então desejamos vê-lo coroado de glória e honra, no lugar a que tem
direito, que é o lugar supremo. Então tornamo-nos ambiciosos pela propagação
do seu reino e da sua justiça por toda parte.
Quando
isto constitui genuinamente a nossa ambição predominante, então não só todas
estas cousas vos serão acrescentadas (isto é, nossas necessidades
materiais serão supridas), como também não haverá mal algum em ter ambições
secundárias, uma vez que estas serão subservientes à nossa ambição primária e
não competirão com ela. Na verdade, só então é que as ambições secundárias
tornam-se sadias. Os cristãos deveriam ser zelosos em desenvolver os seus
talentos, alargar as suas oportunidades, estender a sua influência e receber
promoções em seu trabalho, não mais para fomentar o seu próprio ego ou edificar
o seu próprio império, mas sim para, através de tudo o que façam, glorificar
a Deus. Ambições menores são sadias e corretas, contanto que não constituam um
fim em si mesmas (isto é, em nós mesmos), mas sejam o meio de alcançar um fim
maior (a propagação do reino e da justiça de Deus) e, portanto, o maior de
todos, isto é, a glória de Deus. Este é o "Bem Supremo" que devemos buscar
primeiro; não há outro.
FONTE J. R. W. Stott
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